Thursday, December 01, 2005

Hellfrick Beat

Dias de glória aqueles em São Francisco. Morei uma época lá. Bons tempos, tempos de liberdade. E que energia aquela cidade me dava Deus.

Morava num hotel no centro da cidade. O movimento era intenso. Homens, mulheres, putas, travecos, filhos da puta e filhos sabe se lá de quem. O tempo era de alegria, tinha conseguido emprego num supermercado na parte nobre da cidade. Não fazia muita coisa lá, mas o que eu ganhava dava pra viver. E como vivi... Caminhava com rapidez pelas noites claras de Frisco, e acreditem, eu, Hellfrick, conhecia quase toda população noturna da cidade. Minha mão parecia uma máquina automática de comprimentos, abraços e apertos de mão. Tinha amigos em toda parte da cidade e de todos os tipos. Percorria os bares de mesa em mesa conversando, dando gargalhadas e é claro bebendo em todas elas. Eu estava em tudo e com todos ao mesmo tempo. Minha língua descobria novas bocas a todo momento. E minhas mãos trabalhavam como as de um artista plástico nas pernas (magras, gordas, peludas, pequenas, etc) daquelas gatas. Falava com elas com a confiança e a ternura de um rico, mas as beijava com uma fúria animal. Elas riam com vontade, com tesão e livres de tudo iam pra aonde for comigo trepar.

Foi numa destas noitadas que conheci Jack Keourac. Ele e sua turma apareceram em um destes verões alucinantes de férias de faculdade. Nesta época eu estava saindo com uma garota, Camile, tinha o corpo magro e alta e apesar do gosto de cigarro e cerveja, não me lembro de ter beijado uma boca que me deixasse tão excitado. Camile foi acender um cigarro (mais um) e pediu fogo para um dos amigos de Jack, um espertinho metido a hippie, Allan Ginsberg. Ele falou qualquer coisa pra ela, do tipo gostosa ou uma cantada barata que não me recordo e Camile com toda sua agressividade cuspiu em um dos olhos de Allan uma quantidade razoável de saliva. Houve discussão e empurra-empurra quando eu cheguei entre os dois para defende-la. E Jack, como quem só queria saber de curtir a cidade, interviu e a confusão já era passado quando ele me ofereceu um vidro com algum tipo de solvente. Era simplesmente fantástico cheirar aquilo, meus neurônios pulavam de um lado para o outro freneticamente e num instante estava eu totalmente normal como se nada tinha acontecido.

Gostei de Jack, falava devagar e tinha uma expressão viva, empolgante, daquelas que você só encontra em rostos de quem tem sede de vida, aquelas pessoas que tem gosto por tudo, pelos amigos, pelo lugar pela cerveja e principalmente pelas mulheres. Como um tubarão faminto ele ia em todas as direções e abordava o máximo de garotas que conseguia. Elas o achavam engraçado. Nesta altura Camile não estava gostando nada da repentina amizade entre Jack e eu. Falei pra ela ir embora, que amanha eu ligava. Ela berrou que não precisava ligar. Fiz sinal de ok com as mãos deixando ela roxa de raiva quando ela deu as costas e foi embora.

Hellfrick e Jack livres agora na noite de Frisco. Saímos os dois a caça de alguma perva (assim que os moradores locais chamavam as mulheres noturnas) pra esfregar. Enquanto isso íamos falando da vida, das viagens, das mulheres. Comentei com ele que tinha chegado de Los Angeles há um ano e que já estava pensando em ir pra Nova York. Ele me falou do seu livro que estava quase acabado, mas que precisava decidir o final. Disse que queria ler e ele riu e gritou pra todo mundo ouvir: “Só quando acabar Hellfrick, só quando acabar”.

A noite estava passando e ambos já estavam bêbados quando decidimos sentar no balcão sujo do Famoso Javali’s Bar. Contei as desventuras em Los Angeles e que lá tinha conhecido Arturo Bandini, um escritor que já experimentava a fama de seus livros, mas que apesar de tudo fazia questão de beber uma caixa de cerveja comigo, que além de seu vizinho naquela época era seu grande amigo. Lembramos algumas mulheres e descobrimos que, coincidentemente transamos com a mesma garota em New Orleans. Jack as gargalhadas me falou da carona que pegou com o jornalista maluco chamado H. Thompsom indo de L.A para Las Vegas. Segundo Jack ele tinha uma mala com um arsenal de entorpecentes. Jack vermelho de tanto rir falava, “nós chegamos uma semana depois em Las Vegas e eu nem me lembrava da viagem. Você precisa conhecer o Thompsom, você ia pirar se conhecesse ele cara”.

Depois de muitas cervejas e varias horas de conversas e explanações sobre a existência, os rumos da juventude e aquela coisa toda de sonhadores, percebi que Jack apresentava sinais de cansaço. Ele se virou bateu em minhas costas e disse: “é meu caro Hellfrick, daqui a pouco estarei com o pé na estrada e nosso encontro vai ficar apenas na memória”. Por que não fica uns tempos na cidade, perguntei a ele. Eu posso conseguir um emprego pra você no supermercado ou em uma das centenas oficinas mecânicas espalhadas por todo o canto da cidade. Sinalizando negativamente com a cabeça, mais uma vez ele grtiou: “a viagem não acabou Hellfrick”. Retruquei e perguntei o que ele estava buscando e por que diabos continuava com aquelas viagens pelo país, caronas malucas? Afinal de contas você não é mais um adolescente Jack. Ele parou repentinamente, seu semblante mudou e ele pensativo olhou dentro dos meus olhos e soltou com toda habilidade com as palavras a frase, que só de ter ouvido já me valeu a noite: “A única coisa pela qual ansiamos em nossos dias de vida Helfrick, e que nos faz gemer e suspirar e nos submetermos a todos os tipos de náuseas singelas, é a lembrança de uma alegria perdida que provavelmente foi experimentada no útero e que somente poderá ser reproduzida (apesar de odiarmos admitir isso) na morte.”

Dias de glórias aqueles em São Francisco. Bons tempos, mas que ficaram pra trás. Entrei no carro junto com a turma de Jack e “Pé na Estrada”. O Carro saiu a todo vapor e eu e Jack “ficamos maravilhados, percebemos que estávamos deixando para trás toda a confusão e o absurdo, desempenhando a única função nobre de nossa época: mover-se”.


P.S.: A maioria das falas de Jack foram tiradas do Livro On The Road, dele próprio.