Wednesday, May 26, 2010

Quinta-Feira

Esta é um breve historia de amizade. Uma amizade urbana, como várias outras que se formam na solidão e no desespero. Como outras tantas que se desfazem pela vida daqueles buscam liberdade e pagam por ela em duras prestações diárias. Sem casa pra voltar nem novela pra assistir, vagam procurando nada mais do que si próprios e fazem deste caminho uma estrada excitante, cheia de trechos dolorosos e curvas perigosas. Mas ainda sim, não trocam cem metros desta viagem por nenhuma outra jornada menos feliz.

Conheci os dois quando ainda quebrava um galho como revisor de publicidade numa das várias agências que trabalhei como freelancer. Dani e Mauro já formavam uma dupla de criação quando saímos a primeira vez para beber numa quinta-feira. É fato que já eram amigos, mas é certo também dizer que precisavam de mais um elemento pra coisa toda acontecer. Dani é aquele tipo de mulher que você se apaixona no primeiro encontro. Te conta todos os segredos em menos de 30 minutos, o que faz você imediatamente desistir de qualquer investida. Ela é sempre demais para os homens. Bonita demais. Inteligente demais. Louca demais. Essa foi a primeira de muitas quintas-feiras que nos encontraríamos religiosamente. Acredite você ou não, Dani foi de pantufa para o bar. Ela comprou na promoção das Lojas Americanas e dizia combinar com a blusa.

As quintas-feiras se transformaram numa espécie de dia sacro. Não se podia marcar futebol, baralho, depilação ou o que fosse. Era a nossa data. Praticamente não nos víamos outros dias e quando nos encontrávamos por acaso, numa quarta-feira por exemplo, era como se fôssemos apenas colegas de trabalho. Não que a companhia de ambos não fosse boa o suficiente para os outros dias, mas as mesmas circunstâncias da vida que permitia nosso encontro apenas num dos dias da semana, também o proibia em outros. Mauro bem que tentava me carregar para as festinhas na república dele, mas eu sempre inventava um cinema ou um teatro pra ir. Dani também não gostava das festas no AP do Mauro. Segundo ela “era um bando de pseudo-intelectuais falando nada com nada”. Mauro fazia o estilo nerd maconheiro. Sempre aparecia com umas edições antigas da Virginia Woolf e adorava contar histórias sobre grandes autores. Era fã do Hunter Thompson e sempre vinha com um papo sobre fazer um jornal de literatura. Papo esse que nunca rendeu uma edição sequer. Eu gostava de conversar com Mauro, tinha sempre um ponto de vista alternativo, bem diferente do meu. Trocar idéias com ele sempre me levava para lugares desconhecidos de mim mesmo. A única coisa que não dava para falar com Mauro era a respeito de futebol. Apesar de se dizer são-paulino o cara não sabia nada, nem nome de jogador, nem nada de regras. Enfim, era um dos poucos temas em que ele não se aventurava a discutir.

Como só nos sobrava a quinta, fazíamos dela sempre uma ocasião especial. Dani gostava de dizer que deixaria de ir no bar apenas em caso de morte, dela própria. E mesmo quando seu pai faleceu e foi enterrado numa quinta-feira, Dani foi ao bar tomou uma dose de cachaça e chorou compulsivamente por toda noite. E durante quatro quintas foi assim: uma dose de cachaça e lágrimas. Até tiveram algumas tentativas frustradas de se introduzir outras pessoas no trio, mas depois que Mauro levou uma de suas namoradas e ela foi embora da mesa sem que ele sequer notasse, percebemos que naquele (nosso) dia não haveria espaço pra mais ninguém. Quando Mauro casou, eu tive a certeza de que nossas “quintas” estavam com os dias contados. Mas segundo ele “teve o cuidado de se casar com Uma que fazia yoga todas as quintas”.

E nossa amizade, regada a cachaça e cerveja floresceu de quinta em quinta até chegar o ponto, meu caro leitor, onde quero chegar. O ponto que quero contar. O momento, na minha opinião mais bonito e triste de qualquer história de amor – o fim. Não que eu não goste de inícios, mas tenho um apreço especial pelo período final, pelo segundo tempo, pelo último alto. É no fim, que o caos nos chama pra dançar.

Como já foi informado, esta história tem fim e o nosso começou quando Dani terminou o namoro, que diferente dos outros, resistiu 02 anos às quintas-feiras. O que, convenhamos, não é fácil pra nenhum macho saber que sua namorada enche a cara com 02 marmanjos pelo menos 01 dia da semana. Eu já conhecia o sujeito e sinceramente achei o cara meio banana pra Dani. De qualquer forma, não vem o caso de falar sobre o cidadão aqui. Acontece que no dia do rompimento (era uma quinta) ela apareceu diferente no bar. Com os olhos vermelhos, ela chegou à mesa e abraçou o Mauro com uma força que não era normal. Brindou o primeiro copo avisando que iria encher a cara. Apesar de visivelmente triste, ela estava bastante eufórica, falando e rindo sem parar. Os risos deram lugar a um tom exaltado de voz e palavrões em quase todas as frases. Mauro olhou pra mim como se quisesse dizer “hoje vamos ter trabalho”. E quando Mauro saiu para ir ao banheiro, Dani logo levantou mesmo sabendo que só tinha um banheiro no bar. E quase como miragem, eu avistei a esposa de Mauro acenando e vindo em direção a mesa. Ela nunca aparecia, a não ser para pegar o Mauro bêbado sem condições de dirigir. Quando avisei que ele estava no banheiro, ela saiu dizendo que iria “dar um susto nele”. Como numa epifania premonitiva eu esperei a volta da esposa, que passou por mim chorando e derrubando quase tudo que estava na mesa pra pegar sua bolsa.

Eu nunca soube os detalhes, mas tava na cara que Mauro e Dani estavam se pegando na porta do banheiro. Ambos alegam não saber o que realmente aconteceu e colocam a culpa na bebedeira. Mas segundo a Esposa, que dia desses encontrei no supermercado, Mauro jurou que Dani se jogou em cima dele. Versão que obviamente não foi suficientemente forte para manter o casamento.

Separado da mulher, Mauro fazia da segunda, terça, quarta e quinta um eterno fim de semana. Dani, com a consciência do que aquele dia provocou na vida do parceiro, acompanhava ele em quase todas baladas. E eles a transaram a primeira vez, na mesma época que começaram a cheirar cocaína. Dani amava tanto o amigo que parecia querer preencher o vazio que o fim do casamento deixara na vida de Mauro. Estava disposta a assumir a culpa de tudo e salva-lo de toda a tristeza. Mesmo que isso custasse sua própria felicidade.

Mas nós sabemos que não se preenche amor com amizade. E apesar dos primeiros meses o casal ter demonstrado estar bem, soubemos, eu e Dani, que nenhuma quinta-feira seria igual depois que Mauro pela primeira vez em anos não apareceu, não ligou e não atendeu o telefone. Dani tinha virado sua esposa. E a quinta-feira dele tinha virado quarta, em outro bar, com outros amigos.

Soube ontem pelo Facebook do Mauro que eles já não estão mais juntos. Dani inclusive me enviou um e-mail dizendo que está indo pra Londres. E sempre que o garçom do bar, que foi o principal cenário desta história me pergunta a razão pela qual não bebemos mais juntos, lembro daquela noite que a esposa do Mauro apareceu no Bar. Quando ela saiu, nos sentamos e nos entreolhamos com a certeza de que a quinta-feira seria só mais um dia semana.

Hellfrick