Thursday, November 20, 2014

Metamorfoses

A cada ciclo uma morte. Um renascimento. E o que dói não é a morte certamente. É o processo. É o meio do caminho. Por mais que tenhamos uma alma pavimentada e sólida, a vida vai lascando devagarinho nossa existência, que de lasca em lasca, vai se transformando em algo novo. Como um quadro que acaba de ser repintado, nos olhamos nos espelho e nos vemos outro. Nem melhor, nem pior. Outro. Como conviver com este outro? Nostálgicos, temos saudade do antigo. Dormimos com a fé que o dia possa traze-lo de volta. Rezamos para sermos de novo aquele. Não seremos. Teremos que adaptar dia-a-dia com a alma remontada. Aceitaremos as condições. Não somos mais. Somos outro. Hellfrick

Tuesday, December 27, 2011

Dizer



E essa cidade que só chove. Essa terra que não tem taxi nem metrô. Esse maldito lugar que eu conheci você. Lugar que você deixou depois que eu disse não. Quer dizer, eu nunca disse nada. Pelos meus olhos, você sempre soube que eu te amava. Mas eu nunca disse nada. Eu sabia, você sabia. Mas nenhuma palavra. Nem sim, nem não. E agora você foi embora. Foi pro lugar da onde eu vim. Eu te contei tantas historias sobre lá. Te ensinei um bocado de coisas. Falei da Augusta, do Bar B, sobre Jung, Campbell, enfim. Falei sobre tudo, menos sobre nós. Eu nunca estava preparado pra falar sobre nós. Eu nunca estive preparado pra nada. Sempre esperando a hora certa, o dia certo, a palavra certa. Mas nenhuma palavra é certa ou errada nessa hora. Basta dizer. Apenas dizer. E eu não disse.

Hellfrick 

Thursday, September 22, 2011

Terça-Feira


E me pego outra vez pensando no fim. No fim de tudo que diz respeito a mim. Uma imensa vontade de desistir. Resetar. O caos está sempre a espreita, escondido no dia-a-dia, na rotina massacrante destes dias fúteis. Tento encontrar algum alento escrevendo este texto sem nexo pra enganar, pra fugir. Ansiedade é isso, é querer acabar pra começar e acabar denovo. Um eterno fim, onde o início é mero coadjuvante.

Sento mais uma vez na única mesa desse café – livraria – lanchonete. Penso no absurdo que é este tipo de lugar que simplesmente é tudo e nada ao mesmo tempo. Penso em você. Queria te ligar e dizer que tinha razão. Minha vida é frágil e no fundo eu não passo de um ser imaturo e fraco. Um idiota sensível. Um sujeito completamente despreparado para a vida. Eu queria telefonar e te chamar para dar uma volta na paulista, mas já não sou seu amigo. Nem sequer moro mais em São Paulo. Quem sabe você pudesse dizer que me avisou. Falar na minha cara, gritar como costumava fazer. Eu queria te encontrar pra mostrar que meu plano deu errado. O sonho foi retalhado e não há imaginação que resista aos métodos destrutivos de uma vida adulto-moderna.

Me viro em direção ao balcão para pedir outro café e os olhos dela acidentalmente encontram os meus. A velha sensação denovo. Os olhos claros, a pele extremamente branca e os cabelos ruivos criam um contraste curioso, completamente fora do nosso contexto latino americano dos trópicos. O suor na testa e o crachá da “firma” pendurado no pescoço são a ponte que liga ela ao mundo real. Seria difícil acreditar na humanidade desta mulher. Deus, ela é linda.

Ela senta e pede um cinzeiro. Dá um longo trago no cigarro e seu olhar agora assume um aspecto cansado. Como se estivesse de saco cheio de esperar por uma reação minha. Nosso encontro acontece nesse lugar todas as terças, que é o único dia que me sobra para sentar e ler alguma coisa na hora do almoço. Nunca trocamos uma palavra. Um amor construído no silencio. Um silêncio perturbador, que me faz pensar denovo no fim. Talvez ela seja a morte, que vai me matar e acabar com essa maldita ansiedade e me fazer nascer denovo.  Ela apaga o cigarro, se levanta e vai embora. Eu nada faço. Apenas penso na próxima terça.

Hellfrick

Thursday, June 16, 2011

O peso e a leveza da queda


Tomar consciência da sua partida foi como ser arremessado a 300 km por hora contra um oceano. O mergulho foi tão violento que meus pêlos foram arrancados e eu pude ver o sangue saindo pelo nariz e se dispersar na imensidão do mar. Eu tentei chorar. Eu queria berrar, mas todo aquele mundo de água ao redor, a escuridão... e eu atravessando como uma flecha atirada por deus, pelo diabo, ou sei lá por quem. Sem oxigênio eu apenas aceito com resignação o fim. O nosso fim. Meus pulmões suplicam por um pouco de ar e antes do último suspiro eu aterriso feito um míssil na cama. Inspiro com força e sugo todo o ar que meu peito pode suportar. Expiro um grito de dor e as lágrimas brotam sinalizando que ainda estou vivo. Encolhido no canto do colchão eu consigo apenas sentir e pensar nas dores causadas pela viagem. Depois do seu adeus, a perspectiva do mundo tinha se alterado. Tudo convergia para mim, como se eu, naquela cama fosse um mini buraco negro. Eu parecia atrair tudo em minha própria direção. Meu quarto assumiu um aspecto estranho. Os defeitos na parede e os detalhes do piso inevitavelmente me fizeram pensar que era um ambiente diferente. Um lugar que sem a tua presença era absolutamente novo pra mim. O som da televisão fora do ar selava que a solidão realmente era um fato. Completamente exausto eu adormeço no travesseiro molhado de choro.

Acordo e tenho a sensação de que uma parte do peito foi massacrada. A lembrança da sua despedida faz meu estômago arder um pouco, mas meu corpo está debilitado demais e a alma está com vergonha de sofrer. Esforço-me para encontrar uma ponta de conforto em qualquer pensamento que esteja flutuando em minha cabeça. Tento pensar em Deus. E devagar, de maneira muito embrionária, alguma coisa, um neurônio, um transmissor cerebral, alguma energia elétrica vai tomando a forma de esperança. Começo a aceitar e acostumar com o buraco no lado esquerdo do tórax. O sangue secou e preciso agora limpar a ferida. Lembro que ainda tenho um álcool em gel que comprei em Londres. O telefone toca e um caminhão carregado de realidade descarrega em cima de mim fatos inexoráveis dessa vida. Tenho emprego, carro e uma conta de aluguel pra pagar. Isso me faz arregalar os olhos. Preciso reagir. Movimento minhas pernas e sinto um prazer em descobrir que elas respondem perfeitamente. Junto toda força na tentativa de me levantar e já em pé ameaço uma comemoração. Saio de casa orgulhoso. No caminho para o trabalho sopra um vento morno, agradável para estes dias de outono. O vento percorre meu corpo regenerando todos os machucados, inclusive a cratera do peito. Meus pulmões, que antes permitiam apenas uma respiração curta, trabalham agora lenta e longamente. Pela primeira vez desde a queda, um sentimento de felicidade começa a nascer e posso reconhecer uma sensação nova. No primeiro momento parece ser alguma espécie de liberdade, mas logo amadurece para uma leveza que há muito tempo não sinto. Aumento o ritmo dos meus passos. Estou feliz. Sei que esta leveza é insustentável e logo o peso da sua ausência irá mostrar sua medida novamente. Por hora, apenas caminho numa estrada de repleta de novas possibilidades.

Hellfrick

Wednesday, March 16, 2011

Atrizes


O ultimo sinal do teatro toca e meu coração dispara como se fosse o próprio sino. Minhas mãos estão suadas. Seguro firme o apoio da poltrona como se fosse decolar. Consigo sentir a textura do metal enferrujado, que me provoca um gosto estranho na boca. O cheiro nauseante de mofo me leva a pensar que talvez fosse sensato abrir um buraco no teto para que o sol entre de vez em quando. As luzes se apagam. O bom senso do mundo inteiro alerta que devo correr até a saída, mas estou nervoso demais pra levantar.

O espetáculo começa. Ela entra em cena. Meus olhos a buscam como se fossem anticorpos atrás de uma bactéria. Minha aflição é notável. Eu precisava vê-la mais uma vez. Desde que foi embora minha existência se resume a buscar fragmentos do que sobrou de nós, do mesmo jeito que fazemos quando queremos prolongar o efeito da droga. Vou mudar desta cidade. Tudo lembra ela, tudo fede a ela. Estas ruas do centro estão impregnadas com seu perfume. Os becos ecoam suas risadas. A fumaça são tragos no seu cigarro. Mas antes de ir tenho que encontrá-la para sempre ter na memória o início de tudo, talvez a única parte desta história que vale a pena contar.

Início que aconteceu nesse mesmo teatro mofado, quando vim ver uma peça escrita por um amigo. Roteiro que hoje sei de cor, de tantas vezes que vim vê-la atuando. Os lábios finos, sempre úmidos, dizendo palavras de amor com tanta doçura e tristeza, me fizeram quase um morador deste lugar. Aqueles olhos diabólicos lhe emprestavam uma aparência irônica, mesmo quando ela estava realmente triste. E quando os olhos dessa diaba perceberam minha presença freqüente em suas apresentações, passou a encenar especialmente para seu atento espectador. Por várias vezes eu tive a sensação de ser a única pessoa sentada ali na platéia. Solitário na minha devoção, eu acompanhava cada gesto, músculo estendido, cada nervo esticado. E na cena em que ficava nua, atuava com tanta sensualidade que meu coração parecia bombear sangue suficiente para um javali.

Numa dessas dezenas de apresentações que assisti, nessas inúmeras vezes que assentei na primeira fila, percebi algo diferente. Não era ela. Estava mais agressiva. As veias estavam saltadas no pescoço. O timbre de voz era áspero. Obviamente que o público em geral nunca saberia estas diferenças, mas eu soube na primeira cena. E no ultimo ato, quando ficava nua, ela não descolou um segundo sequer os olhos de mim. Dançava e movimentava seu corpo com maldade nos gestos. Não havia espaço para doçura, apenas desejo. A cada olhar disparado em minha direção eu sentia uma garra esmagando meio peito com toda a força. Meu coração latejava na minha garganta. A ereção foi inevitável.

Ao fim da peça, quando a platéia ainda aplaudia de pé, eu levantei e fui ao banheiro. Ao abrir o zíper toquei meu pau e num ato reflexo me masturbei, como nunca tinha feito na vida, assim, fora de casa. Um pouco antes de gozar ainda pensei o quão absurdo era isso tudo. Essa mulher, essa obsessão. Enfim, essa punheta num lugar público meu deus. Que diabos estava acontecendo comigo? Na saída do toalete ela estava me esperando. Eu achei que fazia parte da minha loucura. Fiquei paralisado. Nunca tinha falado com ela. Era a primeira vez que a via de tão perto, que sentia seu cheiro. Jamais tinha percebido sua temperatura. Aproximou, pegou minha mão direita e levou até o nariz. Sentiu o cheiro da porra, que a pouco havia sido expelida e inspirou mais forte como se quisesse o odor dentro dela. Uma nova ereção embriagou meus sentidos e os acontecimentos que se sucederam nos minutos seguintes são apenas cortes de um clipe rápido. Voltei para o banheiro com ela agarrada ao meu quadril com as pernas feito um aracnídeo. A intensidade com que aqueles lábios delicados percorriam meu pescoço e a violência dos beijos desencadearam uma onda de prazer irreversivelmente forte. Tive vontade de gritar. Eu só pensava em gritar. A língua dela foi a chave para abrir um forno quente, um inferno, cheio de maus espíritos. Toda a minha culpa ia embora junto com qualquer outro pensamento. Era apenas eu, presenciando eu mesmo vivo dentro dela. Usei também das minhas chaves. Os olhos dela que pareciam em transe, logo se transformaram num olhar de cadela, de compaixão. Ela implorou. Eu gritei. Ela gritou.

Gritamos outras vezes mais. Em outros banheiros, quartos, camas. Gritamos mais alto. Berramos. Mas não há grito que sustentasse o amor daquela atriz. Os dias que estávamos juntos pareciam cansá-la do papel de namorada, de esposa. Ela queria outros papéis para representar. Ela queria outro público para encantar e descobrimos que o que ela amava era o que conseguia despertar em mim. No fundo ela gostava apenas do início.

 Hellfrick

Wednesday, October 27, 2010

Hotel Bagdá

“Eu preciso ser salvo. Esta é a única conclusão. Eu preciso que alguém ou coisa me resgate.” Abro a porta pensando na introdução do texto que tento finalizar há meses. Reparo que 0 do 205 está soltando da porta e penso que talvez seja melhor eu mesmo comprar cola e fazer o reparo. Entro no quarto e sinto o cheiro dos meus livros, todos empilhados em cima do aparador. É uma das coisas que eu mais gosto neste quarto, ele tem cheiro de livraria. O aparador também é meu. Comprei por uma pichincha numa liquidação nestas lojas que se vende e troca de tudo. Achei que ia combinar com o clima do lugar. Várias coisas são minhas neste quarto de hotel. O espelho, por exemplo, ganhei de aniversário da minha mãe e trouxe direto pra cá. É a cara do guarda-roupa brega cheio de adornos nos cantos. A cadeira vermelha atualmente é o móvel que eu mais aprecio, sobretudo porque achei jogada no lixo e consegui recuperá-la. Lixei, pintei de vermelho e coloquei uma almofada de camurça. Quando olho para ela sinto sempre uma ponta de orgulho por ter participado do seu renascimento. Fiz todo este serviço de marceneiro aqui dentro, o que me rendeu semanas de alergia e reclamações por causa do cheiro de tinta. A camareira reclamou tanto que dispensei o serviço de quarto. Eu mesmo passei arrumar minhas coisas.
 


Dormi a primeira vez aqui há uns 02 anos quando precisei fazer uma pequena reforma no meu apartamento. Gostei tanto, me senti tão bem que decidi alugar por tempo indeterminado e hoje em dia toda terça-feira passo algumas horas neste hotel. Não que tenha alguma coisa especial, é um quarto comum, típico destes hotéis no centro: cama, uma mesinha, guarda-roupa velho e um banheiro com azulejos azuis. Com o passar do tempo fui trazendo livros, discos antigos e até algumas peças de roupa que só uso quando estou aqui. São coisas exclusivamente minhas. Objetos de uma época livre que a vida vai se encarregando de esconder em porões e fundos de armário. Aqui estas coisas ganham vida, parecem construir um cenário onde eu sou o único cenógrafo.

Hoje saí mais cedo do trabalho para comprar vinho. Aproveitei pra levar também duas taças. Geralmente passo na mercearia da esquina e compro algumas cervejas. Mas hoje é uma noite especial. Hoje pela primeira vez vou receber alguém. Esta noite o passado resolveu me visitar. Olhei no espelho e pensei em fazer a barba. Mas o que minha esposa vai pensar quando eu chegar em casa com a barba feita? Pra minha mulher digo que vou jogar poker nas terças-feiras. Não sei se ela entenderia a razão da existência deste quarto. Provavelmente pensaria que estou tendo um caso e mesmo que acreditasse que eu fico aqui sozinho, duvidaria certamente da minha saúde mental. É difícil de explicar para alguém casado contigo que isso tudo representa um espaço que nunca poderá ser ocupado por ninguém além de mim. Decidi que hoje vou me arriscar, vou fazer a porra da barba e foda-se. O que seria da vida sem estes pequenos riscos para exercitar nossa coragem?

Saio do banho. Sento na mesinha e encaro meu laptop. A página de Word aberta é um convite para mais uma tentativa de concluir o texto. Reescrevo a introdução e continuo lendo o primeiro parágrafo: “Eu preciso ser salvo. É isto. Esta é a única conclusão. Eu preciso que alguém ou coisa me resgate. É isso que eu descobri quando eu comecei a simplesmente me abandonar. Quando eu, de uma hora pra outra, parei de curtir. Deixei de escrever. Deixei de gostar de futebol aos sábados. Deixei de gostar dos meus tênis. Deixei de ler meus livros. Deixei de ouvir minhas músicas. Apenas deixei que a coisa toda ocorresse por cima do meu cadáver. E agora estou aqui deixado. Abandonado por tudo que eu deixei.” Termino de ler o parágrafo e apago todo o restante. Talvez o texto devesse ser só isso, sem complementos. Não existe um mínimo de palavras para um texto se tornar um texto de verdade. É apenas uma questão de aceitar que algumas coisas são o que são. Mas na maioria das vezes não conseguimos, nem sequer tentamos, viver com esta idéia. Talvez eu precise aceitar o fato de que eu nunca te esqueci. Talvez eu precise aceitar de uma vez por todas seu amor. Meu coração dispara. Ouço batidas na porta. Sei que é você. Hoje serei salvo.

Hellfrick

Monday, June 07, 2010

♫ ...mas é tão bom estar com você, juntinho do meu coração... ♫

Contei todas as batidas do meu coração pra ajudar o tempo passar até você chegar. A saudade alimenta o amor como se fosse um monstro faminto. E saudade é dor doida, tritura a alma e desregula o espírito. Quando você finalmente entrou pela porta, os segundos diminuíram a velocidade e em paz, um abraço eu te dei. O telefone tocou. Uma explosão de ciúme e desespero abalou toda a estrutura do tempo e a madrugada durou mil anos de purgatório. O alarme tocou. Senti no estômago uma fisgada de alívio. Apesar do sol, a manhã permaneceu gelada, mas a luz mostrou sua vocação natural de ser esperança.

Hellfrick